271E Job continuou o seu discurso, desta maneira:
2«Juro por Deus, o Todo-Poderoso,
que se nega a fazer-me justiça
e me enche de amargura!
3Juro que, enquanto eu respirar
e Deus me conservar a vida,
4da minha boca não sairão falsidades,
nem pronunciarei mentiras.
5Longe de mim dar-vos razão!
Defenderei até à morte que sou inocente.
6Manterei sempre com firmeza que tenho razão;
não há nada a reprovar em mim.
7Que os meus adversários e inimigos
tenham a sorte dos criminosos e malvados!»
8«Que esperança pode ter o ímpio, ao morrer,
se Deus lhe corta o fio da vida?
9Será que Deus vai ouvir as suas súplicas,
quando sobre ele recair a aflição?
10Aliás, ele não sente gosto em se voltar para o Todo-Poderoso,
em invocar a Deus a todo o momento.
11Vou mostrar-vos o poder de Deus,
não vos esconderei nada do que sei sobre ele.
12E se todos vocês são testemunhas disso,
por que continuam a repetir falsidades?
13Esta é a paga que o criminoso recebe de Deus,
é a sorte que o Todo-Poderoso lhe reserva.
14Se os seus filhos crescerem, morrerão na guerra
e os seus descendentes não terão com que matar a fome.
15A morte sepultará os seus sobreviventes
e as suas viúvas nem sequer chorarão por eles.
16Se tiver amontoado prata como terra
e juntado roupas como pó,
17essas roupas serão usadas pelos bons e honestos
e a prata será destinada aos que não tiverem culpas.
18A casa que ele construir será como teia de aranha,
como uma cabana feita para guardar um campo.
19Deitou-se rico, mas deixará de o ser:
ao abrir os olhos, já não tem nada27,19 Ou: Deita-se o rico e Deus ceifa-o; basta que Deus fixe nele os olhos e ele deixa de existir..
20Os terrores afogá-lo-ão como a enchente;
numa noite, arrebata-o a tempestade.
21O vento leste leva-o consigo,
o vendaval arranca-o do seu lugar;
22Deus empurra-o sem piedade
e ele tenta desesperadamente escapar-se.
23Com assobios e bofetadas,
obriga-o a abandonar o seu lugar27,23 Ou: Quem o vir a ir-se embora desta maneira, assobiará e baterá palmas..»
281«Sabemos que há minas de onde se tira a prata
e lugares de onde se extrai o ouro.
2O ferro é retirado da terra
e da pedra se funde o bronze.
3O homem acaba com as trevas
e vai rebuscar os lugares mais escondidos,
as grutas mais sombrias e escuras.
4Abre galerias longe dos sítios habitados,
longe de todos, por onde ainda ninguém passou,
balanceando-se suspenso de uma corda.
5Por cima é terra que produz o pão
e por baixo parece que foi tudo queimado pelo fogo.
6Nos seus rochedos há safiras28,6 Safira. Pedra preciosa transparente e azul.
e na terra encontra-se ouro,
7por caminhos que nem o abutre conhece,
nem os olhos do falcão já descobriram.
8O leão nunca por lá passou,
o rei dos animais nem lá pôs os pés.
9Até no granito ele meteu a mão
e remexeu a raiz das montanhas.
10Abre galerias nas rochas,
de olhar atento para qualquer preciosidade.
11Explora as nascentes dos rios
e traz à luz do dia as riquezas lá escondidas.
12Mas a sabedoria, donde é que ela vem?
Onde fica a fonte da inteligência?
13Não se encontra neste mundo,
e nenhum ser humano conhece o seu preço.
14O abismo diz: “Não está aqui!”
e o mar profundo repete: “Aqui também não está!”
15Não se vende a troco de ouro,
nem se paga a peso de prata.
16Não se adquire com ouro puro de Ofir
nem com pedras preciosas de cornalina28,16 Cornalina. Pedra fina com estrias coloridas e concêntricas. e safira.
17Não se comparam com ela nem o ouro nem o vidro28,17 O vidro era muito raro e, por isso, era considerado precioso.
nem se dão por ela vasos de ouro fino.
18De cristal e corais nem se fale;
a sabedoria vale mais que as pérolas.
19Não se compara com ela o topázio28,19 Topázio. Pedra preciosa transparente e amarela. da Etiópia,
nem se adquire pelo ouro mais puro.
20Pois, donde é que pode vir a sabedoria?
Onde fica a fonte da inteligência?
21Está escondida, longe do olhar dos seres vivos,
onde nem as aves do céu a podem descobrir.
22A morte e o mundo dos mortos declaram:
“Só a conhecemos de ouvido.”
23Deus compreende os caminhos da sabedoria;
É ele que conhece a sua origem.
24Pois o seu olhar atinge até ao extremo da terra
e observa tudo aquilo que há no mundo.
25Quando atribuiu ao vento o seu peso próprio
e determinou a medida das águas,
26quando fixou as leis que a chuva devia seguir
e marcou o caminho às trovoadas,
27nessa altura, ele viu a sabedoria e apreciou-a,
examinou-a e aprovou-a.
28Depois disse aos homens:
“A sabedoria é respeitar a Deus,
a inteligência consiste em evitar o mal28,28 Ver Sl 11,10; Pv 1,7; 9,10..”»
291Job retomou o seu discurso, dizendo:
2«Quem me dera ser como eu era dantes,
nos tempos em que Deus me protegia;
3quando a sua luz brilhava sobre mim
e eu podia caminhar até na escuridão.
4Estava então na minha juventude,
quando Deus encheu de crianças a minha casa.
5O Deus todo-poderoso estava ainda comigo
e eu estava rodeado dos meus filhos.
6Lavava os meus pés em creme e bálsamo,
rios de azeite corriam sobre as minhas pernas.
7Quando saía à praça pública da cidade,
para ocupar o meu lugar no conselho29,7 O conselho da cidade podia funcionar como tribunal; reunia-se normalmente na praça pública, situada à entrada da cidade.,
8os novos, ao verem-me, retiravam-se
e os velhos punham-se de pé;
9os grandes guardavam silêncio,
pondo a mão a tapar a boca.
10A voz dos notáveis emudecia
e a língua colava-se-lhes ao céu da boca.
11E quem ouvia isto felicitava-me,
os que presenciavam eram a meu favor.
12Pois eu livrava o pobre, quando ele pedia socorro,
bem como o órfão e todos os necessitados.
13Os que antes estavam à morte felicitavam-me
e o coração da viúva enchia-se de alegria.
14A retidão era a roupa com que me vestia
e a justiça adornava-me o corpo e a cabeça.
15Pois eu servia de olhos para o cego
e de pernas para o coxo.
16Era como um pai para os órfãos
e resolvia favoravelmente
até as questões de desconhecidos.
17Quebrei os queixos aos malvados,
para que a presa escapasse dos seus dentes.
18E pensei: “Talvez, como a fénix, eu morra no meu ninho,
para viver muitos anos mais29,18 Alusão à lenda antiga que dizia que a ave fénix vivia longos anos e depois morria queimada no seu ninho, para voltar a renascer das suas próprias cinzas. Ou: Talvez eu morra no meu ninho, para viver anos tão numerosos como a areia..
19As minhas raízes chegam até às águas
e o orvalho poisa nos meus ramos.
20A minha vida renova-se dentro de mim
e o meu arco ganha força na minha mão.”
21Eles ouviam-me até ao fim
e guardavam silêncio, enquanto eu dava conselhos.
22Depois de eu falar, nada acrescentavam;
as minhas palavras penetravam no seu entendimento.
23Esperavam as minhas palavras, bebendo-as com avidez,
tal como a terra absorve as primeiras chuvas.
24Quando eu sorria para eles, nem acreditavam
e não desviavam o olhar do meu rosto alegre.
25Eu escolhia o caminho e punha-me na frente deles
como um rei que mora com os seus soldados
e os reconforta quando estão tristes29,25 Ou: Reuni-os em assembleia e presidi a ela, como um rei no meio das suas tropas; para onde eu os mandava, eles iam..»