Sociedade Bíblica de Portugal
27/4/2020

Cinco coisas sobre lamento

As ruas estão vazias. Os hospitais estão lotados. A igreja é uma partilha em casa, em família. E ninguém sabe quanto tempo isto vai durar e se vai piorar ou não. Nestes momentos de impotência, podemos recuperar a prática perdida do lamento. O professor N. T. Wright escreveu um belo artigo para a revista Time esta semana. Resistindo à tentação de oferecer explicações para a crise atual, convidou-nos a lembrar que o cristianismo nos oferece uma maneira de lamentar que leva à esperança: “Não faz parte da vocação cristã, ser capaz de explicar o que está a acontecer e porquê. De facto, faz mais parte da vocação cristã não ser capaz de explicar – e, em vez disso, lamentar. À medida que o Espírito lamenta dentro de nós, também nós, nos tornamos, mesmo no nosso autoisolamento, pequenos santuários onde a presença e o amor reparador de Deus podem habitar.”

Mas o que é um lamento exatamente? É uma sessão de queixumes? É desabafar? É sinónimo de sofrimento? O Livro dos Salmos – uma coleção antiga de canções e orações de um povo que não era estranho ao sofrimento – pode guiar-nos nesta prática.

O lamento é uma forma de louvor.

Os estudiosos do Antigo Testamento calculam que dois terços dos salmos são lamentos. No entanto, o título da compilação é “louvor” (hebraico tehillim). Como é que uma coleção que inclui tantas queixas pode ser considerada louvor?

É melhor definirmos os termos. No uso comum, as palavras lamento e queixa são sinónimas. Porém, nas Escrituras, a queixa e o lamento ocorrem em contextos diferentes e podem ser distinguidos como conceitos diferentes. No deserto, Israel queixou-se a Deus sobre a falta de pão, carne e água (Êxodo 16-17). Eles assumiram o pior de Deus: Ele quer matar-nos! As pessoas que foram dramaticamente resgatadas no Egito e salvas pelo Mar Vermelho atacaram o seu Salvador, pintando-O como vilão. As queixas eram, na verdade, uma forma de julgar Deus; eles estavam a “testar” Deus. Mas, nos salmos, Israel pede a Deus que responda de acordo com o seu amor infalível, porque Ele é um Deus de justiça e retidão, e porque Ele foi fiel no passado. Ao diferenciar Israel no deserto com Israel na adoração, podemos dizer que uma queixa é uma acusação contra Deus que prejudica o seu caráter, mas um lamento é um apelo a Deus baseado na confiança no seu caráter

O lamento prova relacionamento.

Israel trouxe o seu lamento a Deus nos salmos, com base na aliança que Deus tinha com eles. Estas orações e canções não foram tentativas vãs de convencer uma divindade distante a reparar neles. Eles não eram como os sacerdotes de Baal que dançavam e se mutilavam para forçar uma resposta. Era um povo que o SENHOR – o único criador soberano – havia chamado de “primogénito”. Eles pediram ao seu pai para agir de acordo com o seu caráter.

Nas manhãs de sábado, quando eu e a minha esposa tentamos dormir até aquela hora luxuosa das 8h, e os nossos filhos mais novos querem tomar o pequeno-almoço, eles não batem à porta do vizinho a pedir comida. Eles entram ousadamente no nosso quarto e pedem o que precisam. Nesses momentos, em vez de cedermos à tentação de ficar chateados, devemos antes sentir-nos honrados pelo pedido deles, pois, prova, por si só, o nosso relacionamento com eles.

O reverso desta cena é tragicamente descrito pelo Dr. Russell Moore no seu livro, Adopted for Life. Moore descreve a visita a um orfanato na Rússia enquanto estava em processo de adoção. O silêncio do berçário era assustador. Os bebés nos berços nunca choravam. Não porque nunca precisassem de nada, mas, porque aprenderam que ninguém se importava o suficiente para responder. Crianças confiantes no amor de um cuidador choram. Para o cristão, o nosso lamento, quando levado ao Pai Celestial, é prova do nosso relacionamento com Deus, da nossa ligação e dependência com o grande Cuidador

O lamento é um caminho para a intimidade com Deus.

Há alguns anos, li um artigo impressionante da psicóloga Bonnie Poon Zahl sobre a teoria da vinculação e o nosso relacionamento com Deus. Ela descreve a teoria da vinculação como uma explicação de “como as pessoas aprendem a experimentar e a reagir à separação e à angústia, no contexto de relacionamentos íntimos e fundamentais desde o início das suas vidas”. Segundo John Bowlby e Mary Ainsworth, ela explica os três tipos de vinculação – o vínculo seguro, o vínculo evitante e o vínculo resistente ou ambivalente. Na pesquisa de Ainsworth, uma criança “evitante” não se importava se estava separada ou reunida com os pais, e só queria brincar sozinha; as crianças “resistentes ou ambivalentes” “apegavam-se aos pais e ficavam muito perturbadas quando os pais saíam” e “eram difíceis de acalmar” mesmo quando os pais voltavam, pareciam “estar zangadas com os pais por terem saído”. Zahl escreve que a pesquisa “confirma a tendência de ver Deus como uma figura de vinculação e a tendência de pensar sobre a dinâmica relacional de alguém com Deus nas mesmas duas dimensões do vínculo humano: a ansiedade do abandono e o evitar da intimidade”.

Quando li o artigo de Zahl, pensei no valor da honestidade nos Salmos. Ao colocar toda a emoção e toda a experiência diante do SENHOR, o Deus da aliança, o salmista estava a reforçar uma ligação de intimidade, afirmando o vínculo. Assim como Deus fez uma aliança com Abraão pela separação dos animais, Israel encarnou o vínculo da aliança, ao abrir os seus corações diante de Deus. A Torá foi organizada em cinco livros com as instruções de Deus – a sua palavra ao seu povo; os Salmos são organizados em cinco livros que nos instruem sobre como “responder a Deus”. O Deus que fala, chama-nos a um relacionamento. O lamento é uma das formas de respondemos.

O lamento é uma oração para que Deus aja.

O lamento na Bíblia não é um simples canal por onde expressar a nossa frustração. Embora essa ventilação possa ser benéfica em si mesma, um lamento é uma forma de oração. E a oração não é passiva. Muitos dos lamentos nos salmos são apelos à ação. Eles rogam a Deus que lhes preste atenção e que atue em seu favor. De facto, muitos estudiosos do Antigo Testamento identificam a “petição” como um elemento essencial de um salmo de lamento. Por exemplo, a palavra hebraica para “ouvir”, shema, aparece 79 vezes, enquanto o salmista implora a Deus que ouça atentamente o seu clamor. O salmista apela ao caráter e à aliança de Deus, e pede a sua atenção e ação.

O Novo Testamento leva-nos mais longe. Quando Jesus ensinou os seus discípulos a orar, não lhes deu algo bonito para fazer, para passarem o tempo. Ele convidou-os a participarem na chegada do Reino. Nas epístolas de Paulo, as suas orações não eram o preâmbulo, mas a premissa de toda a carta, incorporando a teologia e ética na sua doxologia. De facto, para Paulo, a oração é uma das maneiras pelas quais Deus está a agir. Como o professor Wright disse, “quando somos habitados pelo Espírito Santo, então, de alguma forma, Deus ora no nosso interior pela dor que nos rodeia”.

O lamento é uma participação na dor dos outros.

Há vários anos, comecei a orar regularmente os salmos. Rapidamente descobri que havia vários salmos que pareciam não “se encaixar” na minha vida – eu tinha pouco ou nenhum uso devocional para eles. Porém, ao aprender mais sobre a prática de orar os salmos, percebi que o objetivo de toda essa prática era colocar-me na congregação dos santos – todos os que vieram antes e todos que estão ao redor do mundo hoje. Talvez eu não estivesse a ser perseguido por inimigos ou cercado por todos os lados, mas, e os cristãos na Síria? E a Susan, que recebeu um diagnóstico de cancro? Quanto mais a minha imaginação se desenvolvia na oração, mais comecei a perceber que a oração dos salmos era uma participação na vida da oração da Igreja, histórica e global.

O lamento não é apenas para os que sofrem; é para os que são solidários com o sofrimento. Amamos o nosso próximo quando permitimos que a sua experiência de dor se torne a substância da nossa oração. Afinal, foi isso que Jesus fez por nós. O estranho ato de perguntar por que Deus o abandonou foi analisado por estudiosos e teólogos quanto ao seu significado na teologia da encarnação ou da Trindade. Porém, o que falhámos em perceber é que Jesus estava a orar as palavras do Salmo 22, precisamente, porque essa foi a oração de muitos mártires judeus no primeiro século. Ao morrer a morte vil e vergonhosa na cruz, Jesus orou em solidariedade com os que sofrem. Na verdade, a sua morte foi a última oração de solidariedade. E todas as orações de lamento que oferecemos são mais um “amém”.

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O lamento não é a nossa oração final. É uma oração durante. A maioria dos salmos de lamento termina com um “voto de louvor” – uma promessa de regressar às ações de graças a Deus pela sua libertação. Porque Jesus Cristo ressuscitou dos mortos, sabemos que a tristeza não é o final da história. A música pode estar num tom menor agora, mas, um dia, será resolvida num acorde maior. Quando todas as lágrimas forem enxutas, quando a morte for tragada pela vitória, quando houver novos céu e nova terra e se juntarem num só, quando os santos se levantarem com corpos gloriosos… então, por fim, cantaremos um grande “aleluia!”

Por enquanto, levantamos o nosso lamento a Deus, enquanto esperamos com esperança. Ainda assim; vem, Senhor Jesus.

Glenn Packiam é pastor associado da New Life Church

Sociedade Bíblica de Portugalv.4.18.12
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