Sociedade Bíblica de Portugal
6/4/2021

páscoa@emtuamesa.com

Do significado da mesa à experiência da comunhão!

“A mesa da ceia expõe-nos como iguais e compromete-nos com o serviço ao outro. Todos indignos, mas todos servos! A sujidade da condição humana não deverá impedir de tomarmos a refeição. Porém somos convidados a lavar os pés, que aqui significa o coração…”

Há um ano, enquanto preparava a reflexão (aqui publicada) sobre a festividade da Páscoa estava longe de imaginar que em 2021 a celebraríamos de novo em regime de confinamento. Não obstante ter desvanecido o inédito da celebração pascal anterior, pareceu-me relevante olhar para o mesmo tema, do mesmo modo, porém com uma outra lente.

Prosseguindo na revisitação da páscoa@emtuacasa.com um foco especial sobre a mesa, após a análise à ressignificação dos elementos da refeição, examinemos agora os comensais. Isto porque, quando a cristandade fala do corpo de Cristo, uns imaginam-no e pintam-no qual pão vivo que desce do céu (cf. Jo 6, 51), outros, vêem-no no corpo terreno de cada nu que precisa ser vestido, na boca dos famintos e sedentos por alimentar e nutrir, ou no rosto daqueles que, presos ou doentes esperam por uma visita (Cf. Mat 25, 35-40). Quando falam da ceia do Senhor (1 Cor 11, 20), uns dão a vida pela solenidade da cerimónia, outros pela festividade da celebração. Os primeiros zelam pela sacralidade da ordenança, os últimos, não abdicam de expressar a alegria da vida que ela celebra.

No contexto de uma celebração familiar, esta refeição traduz um caminho que, dado a comtemplar no domínio visível dos símbolos, pressupõe, no plano invisível, um propósito (cf. Lc 24, 13-35). Por outras palavras, todo o entendimento sobre o significado dos elementos à mesa, não pode ser dissociado do objetivo inerente à experiência de participar desta mesa: a comunhão. Neste sentido é relevante aflorar dois aspetos essências da última ceia.

Em primeiro lugar trata-se de uma refeição que foi, depois de ser propositadamente interrompida e atrasada, propositadamente atrasada para proceder-se à lavagem dos pés de cada comensal. Ao contrário daquilo que de imediato podemos imaginar, Jesus não pretendia proteger a refeição de ser servida a indignos, de pés imundos. Pelo contrário, eles até eram conhecidos por não levarem a sério algumas prescrições religiosas no campo da higiene (cf. Mc 7, 5)! Ao propor lavar os pés de cada um, Jesus pretende expor a sujidade do coração daqueles que estavam à mesa.  A questão não era a limpeza dos pés, mas do coração. Ele queria que a refeição fosse partilhada num ambiente de humildade, onde cada um deveria assumir o compromisso de olhar para si mesmo como servo de todos. Além da reserva e preparação do espaço e das provisões para a refeição, havia bacia, toalha e água. Todavia, não havia ninguém disposto a servir os demais. Jesus levantou-se, pegou na tolha, na bacia com água e, um a um, lavou os pés de todos. Na mesa da ceia não há lugar para mestres ou aprendizes, senhores ou escravos, santos ou pecadores. A mesa da ceia expõe-nos como iguais e compromete-nos com o serviço ao outro. Todos indignos, mas todos servos! A sujidade da condição humana não deverá impedir de tomarmos a refeição. Porém somos convidados a lavar os pés, que aqui significa o coração, para nos abeirarmos da mesa limpos de pensamentos e atitudes de superioridade e indiferença diante da família, o grupo ou a comunidade a que pertencemos.

Numa época marcada pelo primado do privado sobre o público, da fé individual sobre a responsabilidade coletiva, a ceia do Senhor assume-se como uma celebração cada vez mais relevante. O contexto da última ceia promove o sentido de pertença, une os que estão dispersos, transforma estranhos em amigos, e faz com que os indiferentes se assumam como iguais. Por causa da pandemia vivemos tempos de separação e isolamento. Porém a última ceia de Jesus é um convite á comunhão. Devido às restrições ouvimos discursos de afirmação da liberdade individual, mas o contexto e os elementos da ceia apelam à nossa responsabilidade individual de edificar o coletivo.

Em segundo lugar, na última ceia Jesus desafiou os comensais a fazer da refeição pascal uma lembrança perpétua. Muita tinta tem escorrido sobre a natureza da memória. Sem escamotear as diferentes posições de um debate que, no mínimo tem mais de 12 séculos, sugiro olhar para a face menos observada desta «moeda». No cumprimento da ordenança há uma inclinação para trazer à lembrança o passado. Assim, uns enfatizam a morte e o sofrimento de Cristo, enquanto outros preferem salientar a ressurreição e a vitória de Cristo. Mantendo a preocupação paulina, de darmos testemunho de ambas as dimensões – afirmar a ressurreição sem desvalorizar o preço da morte de Cristo (cf. I Co 6,20) e dar testemunho da morte sem excluir a sua ressurreição (Cf. I Co 15.13-14) – proponho focarmo-nos nas palavras de Jesus na ceia as quais trazem à lembrança o futuro: “não tornarei a beber vinho até ao dia em que beber convosco o vinho novo no reino de meu Pai” (Mt 26,29). Entre vários aspetos, sublinhe-se que a ceia do Senhor revela não só a expectativa do próprio Cristo em juntar-se à celebração, salienta também a promessa de festejar com os participantes da mesa. Trata-se de vislumbrar no presente uma festa maior e uma alegria tão mais excelente: juntos, voltaremos a celebrar a ceia com o Senhor!

Na última refeição, Jesus fez da mesa um «lugar» (con)sagrado. Diante da mesa da ceia somos exortados a imitá-lo, a sermos servos uns dos outros.  Diante da mesa da ceia somos chamados a perpetuar esta «memória», a celebrarmos na esperança de, na comunhão de todos, comermos o pão e bebermos o vinho com Cristo. Ao fazer do pão e do vinho uma sugestão sobre o modo como gostaria de ser lembrado, Jesus não estava a propor que a sua memória fosse perpetuada sob a aparência do pão ou vinho! A páscoa@emtuamesa (,) com quem tomas o pão e bebes o vinho, é uma oportunidade para contemplares Jesus. É por isso que, quando não discernimos que nós somos partes do mesmo corpo, enfraquecemos, adoecemos e adormecemos (Cf. 1 Cor 11, 30). Até podemos comer do pão e beber do vinho, mas ficamos aquém da essência, do propósito da ceia do Senhor: a comunhão que podemos desfrutar uns com os outros.

Sociedade Bíblica de Portugalv.4.18.8
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