A pandemia lembra-nos que somos pó!
Texto(s) bíblico
Vivemos o tempo dos números. Dos números previstos e dos números reais. Este vírus invisível colocou a olho nu várias fraquezas: do nosso corpo e sistema de saúde, dos nossos planos/orçamentos e condições de trabalho, das nossas poupanças/investimentos e sistema económico, da nossa exposição e condições de proteção social, etc. Vulneráveis e frágeis, esta pandemia mostra-nos também um outro número (e debilidade) que muito evitamos falar, tão pouco refletir: o número dos nossos dias! Enquanto fazemos contas aos números terríveis daqueles que estão a morrer, evitamos a terrível ideia de saber o número de dias que a morte levará a bater à porta das nossas casas. Esta crise de saúde pública á escala planetária recorda-nos quão narcótica tem sido a ilusão humana a respeito da sua imortalidade. Embora nas palavras de Moisés, sejamos desafiados a saber contar os nossos dias (Sl 90,12), a Bíblia não apela a explorarmos um qualquer modelo matemático da vida, mas a sabedoria que existe numa consciência sã da nossa finitude. Por isso compara a vida dos homens à erva que “brota como a flor do campo, mas, quando o vento sopra sobre ela, deixa de existir e já nem se conhece o seu lugar” (Sl114, 15-16). Assemelha-a ainda ao “vapor que aparece por um pouco e depois se desvanece” (Tg 4,14).
Todos somos assaltados e quase todos desejamos fugir da consciência de que “somos pó e ao pó regressamos” (Gn 3,16). Porém, enquanto eu também procurava escapar a este pensamento, fui apanhado na curva por um outro. Lembrei-me que Jesus disse e fez muitas coisas que entusiasmou os discípulos. Todavia, quando trouxe à memória a inevitabilidade da sua morte, e a partilhou com os seus discípulos, eles não reagiram bem. Pedro tomou mesmo a iniciativa de censurar o discurso e corrigir os planos do mestre (cf. Mt 16, 13-23). Não por maldade, mas erro de perspetiva: Pedro tinha uma cosmovisão da morte, Jesus tinha outra visão da vida. Por isso, na prática Pedro aceitava o que Jesus podia fazer por ele, pelo povo (pela humanidade) mas teve dificuldade em aceitar o que ele, Pedro, podia fazer por Jesus quando este pedia apenas para que o acompanhasse nos seus últimos dias. Diga-se, em abono da verdade, que esta atitude não é um problema exclusivo de Pedro. Lembremos como os amigos de Jó podem representar o esforço da nossa humanidade em fazer tudo o que é possível (espiritualizar até) para, de uma forma cega, recusar a morte. Pensar na morte como meio e não como fim é uma forma de inteligência espiritual! Job teve consciência disso e, apesar de experimentar quão frágeis podiam ser os seus dias, diante da morte podia dizer: “Sei que o meu redentor vive e por fim se manifestará!” (Job 19,25). E, neste mesmo sentido, Jesus propõe uma releitura da morte como redenção e Paulo sugere que a sentença que perdura sobre nós, seja entendida como o sinal que nos recorda que a nossa confiança só pode estar “em Deus, que ressuscita os mortos” (2Co 1:9).
De volta à história de Pedro, quantas vezes caímos no erro do apóstolo? Reconhecemos que Jesus é o Salvador, queremos que ele nos salve a nós, e aos nossos sonhos e interesses. Colocamos a missão de Jesus ao serviço da restauração do povo de Deus. Porém, achamos desadequado o sofrimento, recusamos falar da morte – dele, que é também a nossa.
Além da consciência de que sou vulnerável e frágil, enquanto estou de pé não devo recusar-me a acompanhar aqueles que, mais ou menos conscientes, estão a caminho da sua hora. E estamos todos, incluindo os mais saudáveis! Mas se alguém quiser celebrar a vida, com sentido pleno, (e deve fazê-lo) não esqueça a sua finitude. É preciso coragem para aceitar a ideia de enfrentar morte. Recusar o exercício de pensar sobre o nosso fim não é apenas um desperdício espiritual, mas um risco. Às vezes, querendo tanto celebrar e potenciar a celebração da vida, entre os nossos esforços acabamos por perdê-la. De que aproveita as festas de aniversário, as refeições familiares, as férias com os melhores amigos, os passeios sozinhos se, inadvertidamente, perdermos o chão, a essência, o sentido? Até a própria vida! A morte do famoso youtuber Corey La Barrie no dia do seu 25º aniversário é apenas um exemplo.
Simão Fonseca
(Colaborador da Sociedade Bíblica)