A Palavra que Liberta
A Bíblia e a luta pela liberdade
É sempre bom sermos inspirados por aqueles que, antes de nós, enfrentaram grandes desafios e venceram. Na campanha pelos valores de Deus no mundo atual, os ativistas contra a escravatura do final do século 18, princípios do séc. 19, têm muito para nos ensinar. Acima de tudo, não há dúvida de que a Bíblia desempenhou um papel-chave para ajudá-los a repensar o mundo e a equipá-los para o mudar.
Campanha pela Justiça: William Wilberforce
Um dos Parlamentares mais dotados da Grã-Bretanha e um cristão comprometido, William Wilberforce estava bem equipado para ser o porta-voz da campanha contra a escravatura. Nascido em 1759, foi eleito membro do Parlamento do Condado de Yorkshire, em 1784, um dos lugares Parlamentares mais influentes do país. Amigo chegado de William Pitt, que em breve chegaria a Primeiro-ministro, Willberforce manteve-se sempre independente e determinado a ser senhor de si mesmo.
Wilberforce viajou pelo continente com o seu antigo tutor, Isaac Milner. Entre o tempo ocupado a passear, a jogar e em festas, teve conhecimento de um livro intitulado, The Rise and Progress of Religion in the Soul, (O nascimento e o progresso da religião na alma), do autor Philip Doddrige. Leram-no juntos e Milner teve oportunidade de transmitir uma visão clara do coração intelectual do Cristianismo, o que causou grande impacto em Wilberforce que, ao passar mais tempo a examinar a Bíblia, chegou a um momento de “sólida convicção, não apenas da verdade do Cristianismo, como também da base das Escrituras na doutrina que defendia, e que agora abraçava.”
Ao regressar a casa, em 1785, Wilberforce discutiu o seu futuro com John Newton, antigo negociante de escravos, autor do hino Amazing Grace, e com o Primeiro-ministro Pitt. Ambos insistiram para que Wilberforce permanecesse na política e colocasse a sua nova fé Cristã em prática no centro de tomada de decisões da nação, em vez de se dedicar à Igreja. Foi John Newton quem lhe escreveu a dizer: “Espera-se e crê se que o Senhor te levantou para o bem da Sua igreja e para o bem da nação.”
Wilberforce acabou por acreditar que “a submissão a Cristo era a mais importante decisão política e religiosa do homem.” Agora, passava várias horas do dia a estudar as Escrituras, em meditação e autoexame. Se não fizer isto, dizia ele, “as questões mais influentes [que exercerem mais pressão] vão tomar [o meu coração] em vez das questões mais importantes.”
Uma das queixas sobre o Cristianismo dos seus dias era o facto de um grande número de Cristãos não saberem praticamente nada dos ensinos da Bíblia, de modo que a sua fé era baseada em fundamentos superficiais. Para Wilberforce, a Bíblia tinha-se tornado no binóculo através do qual todas as suas opiniões e ações deveriam ser observadas. “Deveríamos realmente fazer deste livro o critério das nossas opiniões e ações.”, disse ele. O que
isto lhe deu foi uma visão completa da vida. Wilberforce não tinha disponibilidade para continuar a distribuir as Escrituras em África e permitir que os Africanos continuassem a ser escravos. Na reunião anual da Sociedade Bíblica, em 1819, ele disse:
“Os princípios daquele livro abençoado, deveriam prepará-los para empregarem os seus esforços ao máximo, não apenas para libertar os nossos infelizes irmãos em Africa da escuridão e superstição do paganismo, mas também para os libertar daqueles que…têm impedido a possibilidade de se lhes transmitir qualquer verdade divina - quero dizer a continuação do abominável comércio de escravos… porque são culpados de manterem acorrentados, na escuridão e no sangue, um terço dos habitantes do globo; porque erguem uma barreira que apaga a luz e a verdade, a humanidade e a bondade.”
Os princípios Bíblicos que deram a Wilberforce a sua bússola
Wilberforce resumiu assim, os dois maiores objetivos da sua vida:
“O Deus Todo-poderoso colocou-me diante de dois grandes objetivos, a supressão do comércio de escravos e a reforma das atitudes (valores).”
Wilberforce sabia que, se as pessoas adotassem os valores de Deus, iriam reconhecer a maldade do comércio de escravos. O seu pensamento continha quatro vertentes bíblicas.
1. A regra de ouro da nossa humanidade comum. (Mateus 7:12; Génesis 1:27,27; Atos 10:34)
“Que todos… regulem a sua conduta… pela regra de ouro que é fazer aos outros aquilo que, em semelhantes circunstâncias, gostaríamos que eles nos fizessem; e o caminho do dever tornar-se-á claro diante deles e eu acrescentaria qjue, a decisão de [uma] legislatura dificilmente voltaria a ser posta em causa.
Wilberforce fez disto a sua regra de conduta e algumas das primeiras pessoas a beneficiar dela foram os seus oponentes parlamentares a quem, anteriormente, ele havia tratado com desdém. Restaurou um relacionamento muito deteriorado com Charles Fox, que mais tarde se tornou uma força motriz para promover a lei da Abolição do Comércio Escravo no Parlamento. Vivendo no tempo da Revolução Francesa, Wilberforce percebeu que tratar os outros de acordo com esta regra seria também a melhor forma de promover uma sociedade harmoniosa:
“Seguindo a paz com todos os homens e considerando-os como membros da mesma família, atraída para a justiça e bondade fraternal, ele [o cristão verdadeiro] seria respeitado e amado pelos outros… se homens assim enchessem o país…então o mundo inteiro seria realmente ativo e harmonioso na família humana.”
Ao responder a alguns argumentos bíblicos que apoiavam a escravatura, percebeu que a regra de ouro era o argumento mais forte de todos - a humanidade comum de toda a raça foi o argumento usado para resistir aos apelos a favor da predestinação, particularmente de alguns da Igreja de Inglaterra, como justificação para a escravatura. Em 1792, o pregador Samuel Bradburn disse aos seus irmãos metodistas:
“Deus, do mesmo sangue criou todas as nações de homens para habitar a face da terra, e tem determinado, antes do princípio dos tempos, as fronteiras da sua habitação. Quem, pois, tem o direito de ir, ou de autorizar outros a atravessarem o vasto oceano, para escravizar um povo livre e quanto a nós inofensivo? Ninguém a não ser o soberano governador do universo pode garantir tal direito. Não há nada mais evidente do que os Negros terem tanto direito a invadir a Grã-Bretanha e a fazer de nós escravos, como nós de invadir África e fazê-los de escravos a eles.”
Esta regra e a sua explicação está intimamente ligada ao segundo ponto do pensamento de Wilberforce.
2. Amor a Deus e ao próximo (Lucas 10:27)
Wilberforce percebia que os benefícios do comércio escravo – riqueza fácil e expansão do comércio – não seriam entregues facilmente pelos que estavam infetados com a “grande doença das nações: o Egoísmo.”
Havia uma só cura: “é de infinito valor estabelecer nas nossas mentes um forte e habitual sentido do primeiro grande mandamento:
“Amarás ao Senhor Teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua mente e com toda a tua força.” (Deuteronómio 6:5). Se os cristãos nominais são imperfeitos no seu amor a Deus, que dizer do seu amor para com os seus concidadãos? Como enfrenta a benevolência o choque, quando se encontrar com… o nosso amor-próprio, a nossa conveniência, o nosso amor pelo cuidado ou pelo prazer, as nossas ambições, ou o nosso desejo de sermos reconhecidos?”
Se a conveniência levou muitas pessoas a desculpar a escravatura (muito do que podemos desculpar hoje contribui para indústrias ilegais ou para comprarmos produtos baratos de lugares onde as pessoas trabalham arduamente em condições desumanas), somente ver os outros através dos olhos de Jesus os poderia mudar. Wilberforce defendeu que o imperialismo, a força militar e as trocas mercantis, como princípios-chave, eram incompatíveis com o princípio do amor a Deus e ao próximo.
3. Fazer tudo para a glória de Deus (I Coríntios 10:31)
Assinar uma petição ou usar um bracelete é uma coisa. Motivar pessoas a lutarem por uma causa durante anos é outra. O caminho percorrido desde a formação do Comité para a Abolição do Comércio Escravo, em Maio de 1787, até ao voto Parlamentar que lhe pôs fim foi cheio de contratempos. Wilberforce teve de lutar não apenas com aqueles que queriam proteger a escravatura a todo o custo, mas com as implicações políticas da guerra com a França (declarada em 1793) e com a sua saúde débil. A gradual abolição do comércio escravo acordada em Janeiro de 1796 nunca se materializou. Quando ele introduziu outro projeto-lei pela abolição, em Março de 1797, à terceira votação, não passou por quatro votos. Quatro dos seus apoiantes faltaram ao dia da votação: tinham ido à ópera.
Determinado a seguir a sua consciência, Wilberforce teve desentendimentos dolorosos com os seus amigos e recebeu ameaças de morte dos apoiantes pró-escravatura. Entre os anos de 1793 e 1803, todos os anos ele sofreu reveses relacionados com o abolicionismo. Apesar de tudo, manteve-se firme no seu objetivo com a confiança de que Deus o sustentaria e com paixão por buscar a glória de Deus acima de tudo o mais. Ele escreveu:
“Procura-o sempre para te ajudar. A tua segurança consiste numa noção profunda e permanente das tuas fraquezas, numa firme confiança na Sua força.”
Ele incitava os outros a perderem a sua sede de glória humana e a “reter os olhos na tua conduta e buscar a honra [sic] que provém do Senhor’.” (João 5:44).
Quando John Newton insistiu com Wilberforce para que permanecesse na política, escreveu-lhe a dizer: “tu não és apenas um representante de Yorkshire, tu tens a bem mais distinta honra de ser um representante de Deus, num lugar onde muitos não o conhecem.”
4. A reforma do coração (Mateus 12:33-35)
A amplitude da influência de Wilberforce como um representante de Deus foi demonstrada não apenas na eventual abolição do comércio escravo, mas também na forma como “tornou a bondade uma conduta popular.” Ele estava bem ciente de que qualquer reforma verdadeira e duradoura só teria lugar se as pessoas fossem transformadas nos seus corações e pensamento. A reforma no modo de ver a escravatura e nas atitudes (modo como as pessoas viviam o seu dia-a-dia), espalhar-se-ia de pessoa para pessoa.
Esta reforma do coração foi outro princípio bíblico-chave. Wilberforce defendia que o cristianismo era “a religião dos motivos”. A vivência cristã só pode fluir da fé cristã e da experiência. Como Jesus disse, “A árvore conhece-se de acordo com o fruto que dá… como podes tu dizer coisas boas, se o teu coração é mau? Pois a boca fala do que o coração está cheio.” (Mateus 12:34). Ele sabia que qualquer tentativa de reforma política seria inútil a menos que os corações e mentes das pessoas fossem transformados ao mesmo tempo.
Uma história contada pelo seu último bisneto vivo, nos anos 70, demonstra bem a amplitude da sua influência na reforma das atitudes. O seu pai, certo dia, “foi dar um passeio com Wilberforce numa colina perto da localidade de Bath. Enquanto caminhavam, depararam-se com uma cena chocante: um cavalo numa carroça a ser cruelmente vergastado pelo carreteiro enquanto lutava para puxar um pesado carregamento de pedra colina acima. Wilberforce insistiu com o homem para parar de bater no animal. O homem virou-se para ele e começou a praguejar. Contudo, de alguma maneira, reconheceu Wilberforce. ‘Você é que é o Sr. Wilberforce?’, perguntou, e a raiva ia dando lugar à vergonha, ‘Então, nunca mais volto a bater no meu cavalo.’”
A liberdade na Bíblia
A Bíblia retrata a liberdade como parte vital da vida do povo de Deus e um tema central tanto no Antigo como no Novo Testamentos. O evento central do Antigo Testamento foi como Deus libertou os Israelitas da escravidão do Egipto, e os levou pelo deserto até à Terra Prometida (Êxodo 1-24; Josué 24). No Novo Testamento lemos sobre Jesus Cristo e tudo o que a sua vida, morte e ressurreição concretizaram, restaurando-nos a um relacionamento com Deus. “«Se obedecerem fielmente ao meu ensino, serão de facto meus discípulos. Conhecerão a verdade e ela vos tornará livres.»” (João 8:31,32 BPT). A liberdade que vem de seguir a Cristo, capacita-nos a viver a vida ao máximo. Nessa liberdade reconhecemos Deus como um pai amoroso e relacionamo-nos uns com os outros como irmãos e irmãs, valorizando todas as pessoas como criadas à imagem de Deus.
As implicações desta liberdade são individuais e coletivas. O próprio Jesus reagiu fortemente ao confrontar as estruturas opressivas religiosas e políticas dos seus dias. (ver Lucas 11:37-54). Os valores do Reino de Deus que conduziam Jesus são diretamente opostos a qualquer prática ou instituição que deprecie a liberdade e dignidade humanas. A liberdade que Cristo traz, devia gotejar sobre as comunidades, sociedades e nações até ao dia em que toda a terra partilhe esta liberdade e o Reino de Deus seja completamente estabelecido.
Há escravatura hoje?
Infelizmente, a abolição da escravatura não destruiu completamente a existência de “escravos” - o tráfico de pessoas e de crianças para exploração laboral ou sexual, continuam a ser uma realidade séria com a qual desejaríamos não ter de nos confrontar. Mas, tal como disse Wilberforce – “Podemos virar o rosto para o lado, mas não poderemos dizer que não sabíamos”.
Para percebermos melhor a realidade dos “escravos” do nosso tempo, aconselhamos a visualização do filme “Som da Liberdade”.
Veja o trailer aqui:
Que a liberdade inspirada na Bíblia nos ajude a repensar o mundo e nos equipe a continuar a ajudar a mudá-lo.
© Sociedade Bíblica, 2009